Corte americano

A molecada só conhecia um único corte de cabelo: o “americano”. Não sei de onde surgiu o tal corte americano, mas esse era o terror da molecada. Consistia em raspar a cabeça, deixando um pequeno e horroroso topete. Creio que o corte era para retardar ao máximo a volta ao barbeiro, permitindo economizar alguns cruzeiros… economizaria mais se fosse feita a nossa vontade, que era ter cabelos compridos.

E assim ficávamos todos iguais. Aqueles cujo corte tinha algumas semanas, ria do corte do novato, e assim íamos avançando em nossos dias agitados, onde a única preocupação era a brincadeira do dia.

O nosso barbeiro também era único: seu Tico; um velhinho franzino de rosto magro e olhos enfiados em uma cabeça pequena que, além dos olhos, cabia apenas um bigodinho fino e despretensioso, mas sempre muito bem aparado. O seu Tico era avô do Ticão um amigão do campinho de terra preta, que obviamente usava o mesmo corte de cabelo.

Conhecido por todos, o seu Tico, tinha as mãos ágeis e usava uma máquina manual de corte, que mais mastigava do que cortava o nosso cabelo. Seu trunfo era mesmo a tesoura e navalha, sempre afiadas, permitindo cortes precisos e bem executados. Adorava ver ele amolando a navalha, para mim, aquilo era algo cientifico.

Sua cadeira de barbeiro parecia um trono, com acento de couro vermelho e detalhes dourados. Para nós, os meninos, ele colocava uma taboa sobre os braços, assim atingíamos a estatura que permitia cortar o nosso cabelo. A cadeira ficava na varanda da casa, entre orquídeas e samambaias e os vidros de aqua velva usada no acabamento de barbas e bigodes.

O quintal tinha uma frondosa mangueira, então além de cortar o cabelo, a molecada brincava em uma balança improvisada em um de seus galhos, até que chegasse a sua vez. As mangas eram um atrativo adicional, apesar do desafio para colhê-las, em especial as que ficavam mais altas, mas sempre encontrávamos uma maneira de apanhá-las.

Sempre aparecia algum espertinho brigão que decidia arrumar encrenca, e lá vinha o seu Tico com uma vara na mão para impor ordem no quintal. Bastava escutar os seus passos que a paz magicamente se restabelecia.

O seu Tico enfrentava um pouco de tudo diariamente. Tinha o moleque chorão que cortava o cabelo aos prantos, o agitado que não parava na cadeira, o turrão que não obedecia aos comandos para facilitar o corte, o fujão que se escondia para não cortar, mas todos eram, de alguma forma, adestrados pelo seu Tico.

Então, cortar o cabelo era um evento, tanto para nós os moleques, como para os adultos que saiam com cabelo, barba e bigode bem desenhados, além de muito perfumados, afinal o seu Tico era um artista.

Um comentário em “Corte americano

  1. Como o tempo passa! Parece que foi ontem. Quantas vezes sentei nesse trono! Kkkk . Toda vez que ouvia pessoas como o Seu Antônio ou Seu Benedito dizerem. “ vai cortar esse cabelo menino, já está subindo nas orelhas”… e lá íamos pra casa do Ticäo…fazer aquele cortezinho odiado. Mas a situação ainda estava para piorar, quando veio a jovem guarda. Os irmãos mais velhos deixando o cabelo crescer deixando o cabelo lambido, repartido de lado. E nós os pequenos raspávamos, talvez para economizar alguns cruzeiros ou fugirmos dos piolhos não sei. Mas, sempre com o “ americano” na cabeça. Kkkk. Bons tempos. Valeu.

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